Andando descalça, viúva aquela que depois da meia noite só sabia dizer sim, ela mais que depressa lembrou de saber o nome. Que palavra lhe ocorreu, um nome! Mas de que lhe adiantaria o nome ou até mesmo um sobrenome? Pedra é pedra, e daí?
E mesmo assim, na chuva espessa da noite, nada poderia trovejar em vão. Saiu daquela calçada esburacada e no calor de um poste procurou um outro abrigo, um beco. Becos, apesar de vazios, estão na filosofia do cinema estadunidense.
Alguns passos guiados pelo acendeapaga do letreiro neon e chegou ao bar SAIGON. Molhada, sou(era) ainda mais atraente - pensou - porém, no tardar da chuva só os ratos procuram os becos. Ah, e as aeromoças também.
Ao entrar no bar surgiu a cena de Tarantino - um drink no inferno - mas um inferno em mulheres altas, elegantes e pretas. Um estabelecimento restrito, um bar lésbico para aeromoças pretas na ilha do governador, numa região de trânsito livre mas dominada pela máfia local, com casas de jogos, motéis e prostíbulos, aos fundos do Tom Jobin, e sem tocar o samba do avião.
Entre tantos olhares, ela entrou sem diagnosticar empatia alguma. Entrou, sentou-se ao bar e pediu um scoth, cowboy. Passou o olhar prescrutando o ambiente, até que de repente um primeiro contato pseudo-simpático. Com ironia no olhar, uma das mulheres do grupo de uniforme vermelho a convidou para uma partida de sinuca. Sem mais comentários ela recusou e voltou a sua bebida. A aeromoça elegantemente insistiu:
Pausa para se desenlaçar dos movimentos delicados nos dedos fortes daquela mulher insistente enquanto uma voz distante cantarola algo.
- Tem certeza que não deseja algo além do drink? Tenho mais do que beleza a oferecer.
Pausa enquanto tenta desvencilhar o seu olhar do abre e fecha dos lábios da aeromoça.
- Não entendi a sua proposta mas não me interessam os detalhes.
- Faço-me entender assim mesmo. Muitas como você aparecem por aqui na tentativa de devaneios.
- Devaneio e embriaguez de uma rapariga?
Pausa fingindo mexer com os dedos as pedras de gelo que não existem em seu copo numa tentativa de acordar do transe do olhar de Amélia.
- Não creio que seja o seu caso.
"IIIII'm calling you". Esta música, de onde vem?
- Realmente não me interessa.
- Sinta-se a vontade então, tenha apenas medida. Algumas destas mulheres após muitas horas de voo, ficam impacientes com joguinhos sem razão.
Calada estava e calada ficou até que minutos depois dois homens de armas em punho entram no estabelecimento a causar desconforto. No meio do silêncio que se instalara, o mais baixo deles se anuncia e fala com a voz rouca, quase a tossir:
- Alguém aqui conhece Maria das Dores Sampaio?
Um silêncio jazzistico interrompeu a fala do policial.
"Can't you hear me" - Esta música.
- Faça-se o básico por aqui. Estamos a procura de uma mulher de meia idade, acusada de furto, talvez assassinato, no vôo 381 da Royal Air Maroc com origem em Rabat - anuncia o menos baixo adentrando ao salão enquanto desveste a sua capa de chuva encharcada.
Por alguns segundos, ela titubeia no pensamento, mas de fato não podiam estar a sua procura. Apesar da memória falha, ela certamente se lembrava do trauma de voar após a queda na Ilha Grande - acidentes tectônicos imprimem falhas e dobras numa pedra.
Imaginou se juntar à jovem de uniforme azul da Air Qatar que escolhia música na jukebox, logo após a retirada barulhenta dos dois detetives, mas pediu a conta. Até pensou numa cama de motel bem acompanhada. Estava mais para um banho quente e demorado no banheiro de casa, daquele quartosala pequeno na Tijuca, cheio de lembranças vazias. Deixou a propina da garçonete na mesa e pôs-se para fora do bar mesmo com a chuva a aumentar. Andava na ponta dos pés, não pelas poças, mas para dar a impressão de não estar descalça. Muito embora os únicos no bar que não tinham notado a falta de sapatos fossem os dois homens, ela não se sentiu constrangida com os olhares de fetiche para os seus pés.
A pouco custo conseguiu um táxi. O Chofer nipônico fumando um chesterfield a ofereceu um lenço. Ela enxugava os pingos dos cabelos enquanto no som do carro tocava “amada amante” numa versão em espanhol cantada pelo próprio Roberto e na sequência emenda "As time goes By". O barulho das palhetas vasculhando o para-brisa tomaram o lugar da música na rádio e as luzes da linha vermelha riscadas por pingos de chuva a hipnotizaram até a Lepoldina numa viagem quase tranquila senão fosse o barulho da sirene de uma patrulha que atravessou na contramão da Francisco Bicalho e a despertou trazendo a imagem de uma boca vermelha pro seu campo de visão. No banco detrás de uma das viaturas uma mulher devolve o olhar para ela.
Em mais alguns minutos o taxi estava à rua do Matoso quase esquina com Hadock lobo. Ela imaginou ver uma das moças do bar descendo de outro taxi no outro lado da rua. Ela quase viu a porta do elevador se abrir novamente e entrar a garçonete com vestido de veludo azul. Ela meio que ouviu passos de um salto alto no corredor do oitavo andar quando se abaixava para apanhar as chaves debaixo do capacho. Ela se assustou com seu próprio reflexo no espelho da sala ao acender a luz. Desligou e ligou as luzes novamente na intenção de uma surpresa.
Apertou o play da vitrola, diminuiu o volume e a agulha que repousava na faixa 2 do lado A se pôs a percorrer as faixas do vinil. Era quase quatro da madrugada quando entrou no banho com a água que já caía quente e lá ficou por quase vinte minutos, olhos fechados ouvindo os motores dos carros ao longe no elevado da Avenida Paulo de Frontin e o som baixinho que chegava da vitrola, "one more kiss, dear, one more sight".
Na meia-luz do abajur cor de carne a iluminar o pequeno quarto, esticou o lençol de cetim apagando a marca dos corpos da noite anterior, e lá se deitou sem pensar nas horas, mirando atrás da porta um nome escrito na parede cor de gelo manchada de sangue.
Continua...