Esta é a sensação.
A de que cheguei em casa e comi. O programa que vi na tv, a conversa com
o Rafa
que passava por certos apuros amorosos, além das muitas mensagens trocadas pelo messenger nos grupos da família, dos amigos, do trabalho, nada disso ficou. Só me resta a lembrança da comida
que agora pesa no estômago, e esse
gosto-desgosto do chá de camomila. Vi fragmentos de três programas, pensei em trechos pra um novo conto, escutei o choro do bebê da Rose, mas nada disso ficou.
Ficou o peso da comida requentada, direto da panela pra boca. Li alguns posts
sobre a manifestação lá fora, aspirei o gás ardido que entrava pela janela,
ouvi gritos e o barulho do helicóptero
que não parava de sobrevoar, pensei em descer e me juntar aos vândalos, rascunhei um novo status contra o
governo, apaguei, escrevi outro, mas tudo isso se foi da lembrança, apenas o arroto coca-cola
que foge da boca, juntamente com o alho, a cebola e os outros temperos. Desejei
o teu beijo, me ofereci para ir até a tua casa e te fazer uma massagem e juntos
brincarmos de se seduzir, mas nem esta memória, de ter levado um fora, ficou.
Apenas um fiapo de carne entre os dentes e o peso da digestão implorando um
antiácido. Tentei insistentemente e sem sucesso, lembrar do que aconteceu após
aquela cerveja no bar da esquina na segunda passada, embora ainda estejam as
marcas de batom na camisa amarela que permanece pendurada na maçaneta da porta do banheiro,
mas só resta no canto da boca um golpe da calda de caramelo do pudim de leite, a
sobremesa solitária no sofá da sala. Até as pancadas que vem de cima, do
apartamento da filha-da-puta da vizinha
que não para de me irritar, nada disso restou, somente o aroma do café
que ainda invade a cozinha e que não serve nem pra me tirar o sono. O que sobra
no passar dos dias são os quilos que ainda ganharei, e esta cama larga
para me despir num conforto alienado de
que aqui dentro, nesta noite clara, o resto do mundo não está comigo, e que
mesmo com esta pança pesada da comida que não mastigo, irei adormecer
inevitavelmente após parar de escrever.